quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Dezembro



a música a dança
o tango
a cabeça o tronco as pernas os pés

(Gotan Project - Queremos Paz)

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A nau dos insensatos

A nau dos insensatos é uma frequente alegoria na cultura ocidental: a ingénua barca carrega aqueles que representam, cada um, o ser humano, que nela navega loucamente sem saber ou se importar acerca o seu destino. Uma perturbante autocrítica, em tempos medievais.

Também, durante o Renascimento, eram lançadas ao mar barcas repletas de homens mentalmente afectados, loucos. Muitos fizeram da água e isolamento cura. Outros morreriam.

Ship of Fools é um filme de 1965. Um barco, várias almas e nenhumas, o desespero daqueles que de longe as vêem dançando no mar, como um quadro.


domingo, 12 de outubro de 2008

Estórias

Terei começado esta história algures por Junho deste ano para a finalizar incompleta pouco mais de um mês depois. Falava de Vladimir, nascido em Kiev (1624) de uma cozinheira especialista em comida árabe e de um velho ministro de um antigo Czar caído em desgraça - todos estes pormenores e alguns mais me foram dados sob a forma de uma biografia sua, pelo Pedro Sena-Lino. Desde cedo me apaixonei pela personagem e pelos ramos que nele fui enxertando.
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Contudo, essa mesma história, com cerca de 18 páginas A4 preenchidas e mais de dez mil palavras não fora mais longe, por força de circunstâncias minhas, do que a participação de uma personagem do enredo, Jelena Pugach, que distante e de perto aterroriza a vida de Vladimir Peteredin, apenas na medida em que a modifica. Todas essas palavras estão dedicadas a Jelena, na sua própria voz. Toda a estória. E aqui, oferecendo-lhe humildemente (e exteriormente) um espécie de benção ou consagração, ou despedida, transcrevo um excerto. Uma carta de Jelena a Vladimir.
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Vladimir,

Algo me fez aterrorizar com a tua presença, com o teu mundo. Como se de longe me abraçasses para sempre, prendendo-me em tua dedução, em teus braços infiéis. Parvoíce. Nunca me terás. Nunca te amarei pois nunca me permitirás ver-te lá para a frente, no tempo que ainda há-de vir. Nem sequer existe para ti, tal tempo. O que tu sabes, reduz-se à materialidade da existência, ao seu chão. Pois digo-te que o seu sentido descansa no seu pó, e na sua aprendizagem, sua limpeza. O Amor é a volúpia desse tempo futuro, um baú de desejos, aspirações, sonhos que impraticam o dia-a-dia em seu favor. A beleza do estar com alguém, sabendo-o para sempre, estando agora mas em milhares de “estares”, vivendo com esse alguém este segundo, mas absorvendo já a felicidade dos próximos. De que vale abandonar-me a um só tempo, este em que te escrevo ou tu o lês, se neste tempo posso morder e viver tantos outros?

Tu sonhas, Vladimir? És mundano e pobre. Olhas para baixo, vês o material e nele te apoias. Vives no lodo, como tantos outros, mas com a subtil diferença de que sabes o que há para cima, e o rejeitas carnalmente, preferindo a impureza de uma vida sem alma. As mulheres, Vladimir, o tabaco, os quadros, são corpos sem alma. Ela abandona quem a tenta viver num segundo, violá-la. Assim como os sonhos. Constrói-se. A alma é futura e alimenta-se de tempo, como nós. Tu não te dás tempo. Rio-me das minhas anteriores preocupações. Nunca te amarei.
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sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Andei hoje aos tropeções. Mas levantar-me é elucidativo. Diria uma visão panorâmica.

Andei hoje cheio de luzes.

Obrigado, Sílvia, pelo passeio quase desprovido de sentido a não ser ser desprovido de sentido. Faz falta, de vez em quando. Não é?
Obrigado, Tiago, pelas tuas tão hirtas palavras, aliás hirtos sons. Sabes a que me refiro.
Obrigado, Vânia, pela tua tão emaranhada parecença comigo. Pelas aulas de Química e croissants e pela ventania de caviada na praia. Pelos beijos que te dou. Pelo sorriso com que os recebes.
Obrigado, Rafa. O brinde à tão minha paragem de Francos, as cigarrilhas e a cerveja e o Sol.
Obrigado, Inês.
Obrigado, Catarina, pela tua beleza, pelo teu salto de pés juntos. E pelo meu.

E se acaso falo com alguém longinquo, e se , hoje nuvem do possivel, amanhã caires, chuva de real sobre a terra, não te esqueças nunca da tua divindade original de sonho meu. Sê sempre na vida aquilo que possa ser o sonho de um isolado e nunca o abrigo de um amoroso. (...) Que o teu génio seja o ser supérflua, e a tua vida a arte de olhar para ela, de seres olhada, a nunca idêntica. Não seja nunca mais nada. Hoje és apenas o perfil criado deste livro, uma hora carnalizada e separada das outras horas. Se eu tivesse a certeza de que o eras, ergueria uma religião sobre (o sonho de) amar-te.

Livro do Desassossego

terça-feira, 23 de setembro de 2008

22.09.2008










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Todo o belo se gasta. O tempo é-lhe corrosivo.
A beleza como fósforos, o fogo gasta, o fogo corrói. Acende-se um novo, diferente.
E pode ser isto viver, até ao fim dos nossos dias.

Há quebras. De vez em quando se olham as coisas ordinárias, e como ventriloquos de nós mesmos percebemos a sua presença,
como um todo talvez intemporal.
Não se gastam, tampouco se corroem. E melhor vendo, onde está afinal a beleza?

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Viagem a Lisboa

Mais uma vez me encontrei a ver um filme, desta vez Viagem a Lisboa.

Têm sido tempos em que cada vez mais me surpreendo com a beleza do desconhecido.

De lá retiro um pequeno diálogo que achei curiosíssimo.
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Dantes as imagens contavam histórias e mostravam coisas. Agora só pretendem vender, histórias e coisas. Mudaram sob os nossos próprios olhos. (…) As imagens estão a vender o mundo ao desbarato. Quando vim para Lisboa fazer este filme, julguei que conseguia fugir a isso.(…) Mas não funcionou, Winter. Por algum tempo, pareceu funcionar, mas depois desmoronou-se tudo. Adoro esta cidade! Lisboa! E a maior parte do tempo vi-a realmente em frente aos meus olhos. Mas apontar uma máquina de filmar é como apontar uma arma. E cada vez que a apontei, senti-me como se a vida se estivesse a escoar das coisas. E eu filmava e filmava, mas a cada rodar da manivela, a cidade recuava mais e mais, afastando-se mais e mais. (…) Mas há uma maneira e estou a trabalhá-la. Ora ouve! Uma imagem que não foi vista não pode vender nada. É pura, e por conseguinte, verdadeira e bela. Numa palavra: é inocente. Enquanto nenhum olhar a contaminar, permanece em uníssono com o mundo. Se não for vista, a imagem e o objecto que esta representa, permanecem juntos. Sim, é apenas quando olhamos para a imagem, que a coisa que ela contém… morre. E cá está, Winter, a minha "biblioteca de imagens jamais vistas"! Todas estas imagens foram filmadas sem intervenção do olhar humano. Ninguém as viu enquanto foram gravadas, e ninguém as visionou depois. Filmei-as todas nas minhas costas! Estas imagens mostram a cidade como ela é e não como eu desejaria que fosse. Seja como for, cá estão elas, no seu primeiro e doce sono da inocência, prontas a ser visionadas por alguma geração futura, com um olhar diferente do nosso. Não te preocupes, amigo, ambos estaremos mortos.

domingo, 31 de agosto de 2008

Samanta sabia que a encontraria. Excitava-a a casa, a clareza da pedra, as telhas do telhado, a celulite idosa da porta negra: palavra que de resto nunca soubera encontrar no seu corpo, nas suas pernas. Deliciava-a a simplicidade das janelas, mas cedo se apercebeu da estupidez dos seus sentimentos, num virgem acesso de lucidez. Olhou o verde, não jovem mas alimento de necrófagos, da erva, o azul do céu e a realidade monocromática; suas ovelhas pastoreando. O Sol descia, imune, partira para a sua aldeia, como tantas outras vezes fizera.
Acordou sob a manhã, sob o tecto, sob tectos e assobiou estridentemente para os bichos brancos, babando os dedos. O Sol nascente conduzia-a, autómato, pelos trilhos de terra sangrada e seus ossos, e Samanta dançava as nádegas involuntariamente como as ovelhas que a seguiam. Interrompeu esse movimento sentando-se indolormente nas ervas que já viviam consoante o formato do seu traseiro e olhou-a. Sabia-a lá, a casa. Ruminando a fúria, a liberdade ou a leveza, correu para a porta velha e existencial. De lá de dentro se ouviam vozes masculinas. Bateu inúmeras vezes, excitada, esperando que o homem negro ou o homem-sonho lhe abrisse a porta. Não sabe qual delas abriu primeiro, se essa porta, se a que escondia por entre as pernas. Tampouco se importara. Deixou-se penetrar lentamente, como se chupasse um rebuçado, ocultada de si mesma, ou querendo-se assim?, dentro dos lodos nauseabundos da casa. O homem levara a sítios onde jamais teria ido.
Abriu os olhos empapados, carregando a sensação de que dormira por séculos seguidos. Ensalivou os dedos mais uma vez, comandando um grito para as ovelhas que miravam Samanta como um espelho. Desta vez teria pressa, ou conhecia algum objectivo, já que seus olhos se distinguiam do resto da sua face. Chegara mais cedo, como previra, aos campos que grunhiam e à casa. Olhou-a e largou-a num segundo do colar dos olhos, enquanto acariciava o pelo de uma do seu rebanho, como se receasse o seu desaparecimento, o seu abandono. E sem conseguir acalmar a volúpia e o acordar desajeitado (como quem não se habituara a acordar) das suas entranhas correu para a porta escura e masculina. Não quis esperar: não era virgem jamais. E abriu-a, esperando o bafo pestilento de um homem narinas acima. Mas Samanta encontrou apenas a claridade, a merda da claridade, a desocupação. Nada lá dentro senão uma velha espingarda e uma foto a cores sem margens, de uma encosta verde, a erva milimétrica, aquele lugar ou tantos outros, a paciência estúpida e atrasada das nuvens, o céu limpo e azul, um canto gregoriano repetindo vezes sem conta. Samanta sabia ser essa foto. Sabia também que o seu homem-sonho fora isso apenas, e de facto dormiu mais tempo do que o que guardava para o fazer. Um sonho. Todavia bendito aquele que decidira dar ao inconsciente do sono e ao desejo do homem o mesmo nome. E chorara de joelhos em frente à porta velha, aberta, fazendo-se chagas na pele com as unhas sem reparar, enquanto ouvia esse canto da sua cabeça vezes sem conta. Chorava a sua própria vida.
Riu-se. Caminhou para junto das ovelhas que pastoreava e imitou os quadrúpedes, para a trás e para a frente, de mãos no chão, soltando balidos de vez em quando: não a podem acusar de não ter tentado ambos os caminhos. Mas não. Apercebeu-se que não seria assim. Levantou-se, sem se sentir estúpida ou humilhada, e encontrou de novo a porta da casa, aberta ainda (como sempre estivera), e de lá de dentro a velha espingarda. Sem saber de onde lhe vinha a arte, disparou um tiro voluntário para uma das que pastoreava, talvez batendo o caminho, a volúpia, ou observando a morte.
Ouviram-se mais seis disparos rectos por entre gritos de própria vivacidade, gemidos de prazer e excitação. De felicidade.
Reconheceram-na pela face surpreendentemente incólume. Três cartuchos enterrados nas suas pernas; outros tantos no seu braço esquerdo. Samanta sucumbira enquanto o sangue escorria. Como desejara.

Trás-os-Montes, literalmente

Há muito que não actualizava o meu blog.. E não será talvez agora que me dedicarei a fazê-lo decentemente.
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Ando perdido, ou encontrado, por Vinhais, terra dos meus avós paternos. Dediquei muito tempo à escrita, à leitura, à simplicidade. Esbocei um poema, para já sem título, e uma pequena história acerca de Samanta, uma mulher transmontana. Estou muito satisfeito com esta.
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Começo a sentir a falta de inércia que precede os caminhos de Santiago. Penso muitas vezes que muitas pontas ficam por aparar, e que talvez não me sinta preparado para o percorrer mais uma vez. Apesar de ser muito sedutora a ideia de morrer e nascer de novo pelos inícios do ano lectivo, terei que repensar decisões, esta decisão. Aguardo-vos de qualquer das formas :)
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Não resisto em vos deixar uma música. (Yeah Yeah Yeahs - Gold Lion)
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Saudades do Tiago e da Sílvia.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Agosto

A facilidade com que se perde de vista o ser.
Por querer ser melhor, e consequentemente ser dois ser diferentes, sem ser nenhum deles: valendo o que valem. Nem o ofuscado, nos domínios do desejo, nem o pesado e obsessivo, lá (aqui) atrás. E acabamos por perceber que a manutenção do ser é custosa, mais vale ir sendo.
E quantas vezes só se é nos intervalos de ser.
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(Teardrop - Massive Attack)
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Depois de tão fáceis e felizes férias, não parando um segundo, retirei-me um, dois dias em minha casa, relembrando a escrita, a leitura, o cinema. (Agora que comprei uma Zon Box equipada com os quatro canais TVCine, farto-me de gravar filmes.)

Li A Identidade de Milan Kundera, os poemas que ia beberricando de vez em quando, comecei um outro livro. Vi Sliding Doors (Instantes Decisivos em português, cuja ideia inicial, provar que um qualquer momento e suas decisões divide os caminhos da nossa existência, me pareceu interessante mas pobremente explorada), Non, ou a vã glória de mandar de Manoel de Oliveira, La Moustache, e Lila dit ça.
Recomendo este último, pela sua estranheza, pela sua beleza, ou talvez pela sua estranha beleza. (em português: Entre as pernas de Lila)
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E agora posso marchar outra vez...

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

A Hora do Diabo

Um dia destes, imediatamente após o meu regresso de Barcelona, e ligeiramente menos míope numa diferente visão, que não é senão a visão poética, apanhei o 501 e desci no Palácio. Da biblioteca Almeida Garrett, que lá se encontra, levava Baldios de José Tolentino Mendonça e Ou o poema contínuo de Herberto Hélder. Rapidamente me vi fartar de poesia e, como tudo o que é acaso é santo, mais ou menos aleatoriamente arranquei da prateleira A Hora do Diabo, nunca ouvira falar, de Fernando Pessoa. (Re)aprendi, embora com prazer, que a poesia não é apenas uma forma. Mas isso pouco interessa.

Falava de um Diabo, irmão de Deus, e todo o conto bate suas asas em redor de um diálogo entre esta personagem e Maria, uma mulher em tudo anónima menos no nome, fiel representante do sexo feminino. Um Diabo divergente da habitual concepção de diabo, um mestre da música, do luar, dos sonhos, mas que é apenas a oposição de tudo, o seu avesso,

Tudo vive porque se opõe a qualquer coisa. Eu sou aquilo a que tudo se opõe.

inclusive do próprio Deus,

Deus criou-me para que eu o imitasse de noite. Ele é o Sol, eu sou a Lua. Minha luz paira sobre tudo quanto é fútil ou findo, fogo-fátuo, margens de rio, pântanos e sombras.

E numa análise sumária, este Diabo é o criador daquilo que não existe, “a incarnação do nada”, tem como sua função apenas fazer sonhar,

Sou o Deus da Imaginação, perdido porque não crio.

Feitas as apresentações. Adiante, diz-nos:

Os problemas que atormentam os homens são os mesmos problemas que atormentam os deuses. (…) Tudo é símbolo e atraso, e nós, os que somos deuses, não temos mais que um grau mais alto numa Ordem cujos Superiores Incógnitos não sabemos quem sejam.

Somos então colocados, os homens e Deus, numa escada vertiginosa, numa hierarquia em que Este ocupa o patamar que nos é imediatamente superior, mas inferior a outros mais, de número incógnito, criadores do Criador, pais do Pai dos homens.
Ainda no mesmo monólogo, o Diabo introduz um novo elemento nessa escala, o animal, a sua base, imediatamente inferior à do homem. E explica-o, numa fala lindíssima.

O homem não difere do animal senão em saber que o não é. É a primeira luz, que não é mais que treva visível. É o começo, porque ver a treva é ter a luz dela. É o fim, porque é o saber, pela vista, que se nasceu cego. Assim o animal se torna homem pela ignorância que dele nasce.

E finalizando, nas palavras do Diabo, que é também ele um Deus, apercebemo-nos de uma espécie de leveza pesarosa, na condição divina. Também os deuses vivem o desassossego.

Tendes a vantagem de serdes homens, e creio às vezes, do fundo do meu cansaço de todos os abismos, que mais vale a calma e a paz de uma noite da família à lareira que toda esta metafísica dos mistérios a que nós, os deuses e os anjos, estamos condenados por substância. Quando, às vezes, me debruço sobre o mundo, vejo ao longe, indo do porto ou voltando a ele, as velas dos barcos dos pescadores, e o meu coração tem saudades imaginárias da terra onde nunca esteve. Felizes os que dormem, na sua vida animal, ― um sistema peculiar de alma, velado em poesia e ilustrado por palavras.

Diz Álvaro de Campos a Alberto Caeiro, num dos seus poemas: “Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.”

A Hora do Diabo é um livro fascinante, que pela sua natureza é igualmente contrariador, um espelho onde as ideias vêem a sua simetria.

Contrariar ideias é fazer com que nos abandonem, e se caia no desalento e de aí no sonho e portanto se pertença ao mundo.


Photobucket

Midnight Juggernauts - Into the Galaxy. Uma música que me foi acompanhando ao longo desta pequena grande semana de férias.



quarta-feira, 6 de agosto de 2008

cantos do seu canto

Ouvi dizer por aí que há frases que completam frases. Que inauguram o cessar das deambulações e das levezas. Sei lá, pontos finais, que nos mergulham inteiros no movimento, no rumo, e que são cada pedaço do caminho recém-descoberto. Melhor, nos reencontram com o caminho abandonado.

“É o caminho contigo que te renova para os outros”
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Vou de férias (coerente), volto daqui a pouco mais de uma semana.
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terça-feira, 29 de julho de 2008

poemas destes dias


Talvez seja uma possibilidade.
O poema é um talvez.
Quem recolhe a rutilância
da cor quando o pensamento é vivo
num momento de aspirada glória?
Só um ser que se recolhe surpreende as águas
e concentra em si o negro e o ouro de uma corola inicial.


António Ramos Rosa - Horizonte a Ocidente

sexta-feira, 21 de março de 2008

O Retrato de Dorian Gray

"Não somos poucos os que às vezes acordamos antes do alvorecer, quer após uma daquelas noites sem sonhos que quase nos fazem enamorar pela morte, quer numa daquelas noites de horror e disforme alegria, quando pelas câmaras do cérebro esvoaçam fantasmas, mais terríveis do que a própria realidade, e o instinto, com aquela vida intensa que nos espreita em todos os bizarros grotescos, e que confere à arte gótica a sua duradoura vitalidade, arte essa que, como podemos imaginar, é especificamente a arte dos que têm as mentes perturbadas pelo mal do devaneio. Pálidos dedos penetram, trémulos, pelas cortinas. Em negras formas fantásticas, sombras mudas rastejam para os recantos do quarto e aí se encolhem. Ouve-se lá fora a restolhada dos pássaros por entre as folhas, ou o rumor dos homens que vão para o trabalho, ou ainda o murmúrio e o gemido do vento a descer as colinas, ou a vaguear em redor do silêncio da casa como se receasse despertar os que dormem, mesmo quando é forçoso fazer sair o sono da sua púrpura gruta.Ergue-se véu após véu da névoa ténue e sombria, e as coisas retomam gradualmente as formas e as cores, e vemos a madrugada a refazer o mundo na sua forma primeva. Os pálidos espelhos recuperam sua vida mímica. Os castiçais apagados encontram-se onde os deixáramos, e a seu lado está o livro de estudo a que não se cortaram todas as páginas, ou a flor armada que havíamos usado no baile, ou a carta que receáramos ler, ou que fora lida vezes sem conta. Nada nos parece alterado. Das sombras irreais da noite regressa a vida real que conhecíamos.Temos de a retomar no ponto em que a havíamos deixado, e então assalta-nos uma sensação terrível da necessidade de uma energia permanente na invariável ronda extenuante dos hábitos estereotipados, ou um anseio desmedido por uma hipotética manhã em que os nossos olhos acordem para um mundo renovado nas trevas para nosso prazer, um mundo em que as coisas tomem novas formas e novas cores, e que tenha mudado, ou tenha outros segredos, um mundo em que o passado seja ínfimo ou mesmo inexistente, ou que não sobreviva, pelo menos sob qualquer forma consciente de dever ou remorso, pois que até a lembrança da alegria traz amargura, e as recordações do prazer trazem mágoas"
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O Retrato de Dorian Gray - Oscar Wilde
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Não me interpretem mal. Aprecio este texto tal como aprecio a eternidade misteriosa das paisagens: pela sua distância espiritual e palpável - não me sinto acordar. Sou imune à sedução vácua da morte, seus beijos da facilidade do insosso. A morte é-me um ser assexuado. Só quando perder o meu nome, a minha identidade, por ela me apaixonarei. Muito menos sou antro de monstros fantásticos e paradoxais - enfermeiros de cor inoculando a ilusória monotonia da vida. Sei-me no seio de mim mesmo, só eu. E acabei de ler as cartas que receei ler; queimar as lidas "vezes sem conta". Conduz-me a eterna felicidade de ser alterado a cada aspereza do tempo.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Centro do Mundo

"Entrega-te. Lança o escudo e a espada na passividade da areia.
Pensa que nada é necessário: se lutares contigo mesmo, sairás sempre vencido."

E escrevera isto nas ruas de Santiago, enquanto se despegava em direcção à camioneta.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008


Talvez seja assim, viver.
Sem notar a passagem do tempo, eu, abraçado
a um bafo sonolento e quente: hoje. Vocês, objectos,
olham-me com o meu olhar pegajoso, sei lá, mastigado,
para me roubarem a profundidade das coisas?, de tal maneira
que sou só, agora, palavras que me disseram. Felizes.
De cor: “Amor.”.