quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A nau dos insensatos

A nau dos insensatos é uma frequente alegoria na cultura ocidental: a ingénua barca carrega aqueles que representam, cada um, o ser humano, que nela navega loucamente sem saber ou se importar acerca o seu destino. Uma perturbante autocrítica, em tempos medievais.

Também, durante o Renascimento, eram lançadas ao mar barcas repletas de homens mentalmente afectados, loucos. Muitos fizeram da água e isolamento cura. Outros morreriam.

Ship of Fools é um filme de 1965. Um barco, várias almas e nenhumas, o desespero daqueles que de longe as vêem dançando no mar, como um quadro.


domingo, 12 de outubro de 2008

Estórias

Terei começado esta história algures por Junho deste ano para a finalizar incompleta pouco mais de um mês depois. Falava de Vladimir, nascido em Kiev (1624) de uma cozinheira especialista em comida árabe e de um velho ministro de um antigo Czar caído em desgraça - todos estes pormenores e alguns mais me foram dados sob a forma de uma biografia sua, pelo Pedro Sena-Lino. Desde cedo me apaixonei pela personagem e pelos ramos que nele fui enxertando.
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Contudo, essa mesma história, com cerca de 18 páginas A4 preenchidas e mais de dez mil palavras não fora mais longe, por força de circunstâncias minhas, do que a participação de uma personagem do enredo, Jelena Pugach, que distante e de perto aterroriza a vida de Vladimir Peteredin, apenas na medida em que a modifica. Todas essas palavras estão dedicadas a Jelena, na sua própria voz. Toda a estória. E aqui, oferecendo-lhe humildemente (e exteriormente) um espécie de benção ou consagração, ou despedida, transcrevo um excerto. Uma carta de Jelena a Vladimir.
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Vladimir,

Algo me fez aterrorizar com a tua presença, com o teu mundo. Como se de longe me abraçasses para sempre, prendendo-me em tua dedução, em teus braços infiéis. Parvoíce. Nunca me terás. Nunca te amarei pois nunca me permitirás ver-te lá para a frente, no tempo que ainda há-de vir. Nem sequer existe para ti, tal tempo. O que tu sabes, reduz-se à materialidade da existência, ao seu chão. Pois digo-te que o seu sentido descansa no seu pó, e na sua aprendizagem, sua limpeza. O Amor é a volúpia desse tempo futuro, um baú de desejos, aspirações, sonhos que impraticam o dia-a-dia em seu favor. A beleza do estar com alguém, sabendo-o para sempre, estando agora mas em milhares de “estares”, vivendo com esse alguém este segundo, mas absorvendo já a felicidade dos próximos. De que vale abandonar-me a um só tempo, este em que te escrevo ou tu o lês, se neste tempo posso morder e viver tantos outros?

Tu sonhas, Vladimir? És mundano e pobre. Olhas para baixo, vês o material e nele te apoias. Vives no lodo, como tantos outros, mas com a subtil diferença de que sabes o que há para cima, e o rejeitas carnalmente, preferindo a impureza de uma vida sem alma. As mulheres, Vladimir, o tabaco, os quadros, são corpos sem alma. Ela abandona quem a tenta viver num segundo, violá-la. Assim como os sonhos. Constrói-se. A alma é futura e alimenta-se de tempo, como nós. Tu não te dás tempo. Rio-me das minhas anteriores preocupações. Nunca te amarei.
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sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Andei hoje aos tropeções. Mas levantar-me é elucidativo. Diria uma visão panorâmica.

Andei hoje cheio de luzes.

Obrigado, Sílvia, pelo passeio quase desprovido de sentido a não ser ser desprovido de sentido. Faz falta, de vez em quando. Não é?
Obrigado, Tiago, pelas tuas tão hirtas palavras, aliás hirtos sons. Sabes a que me refiro.
Obrigado, Vânia, pela tua tão emaranhada parecença comigo. Pelas aulas de Química e croissants e pela ventania de caviada na praia. Pelos beijos que te dou. Pelo sorriso com que os recebes.
Obrigado, Rafa. O brinde à tão minha paragem de Francos, as cigarrilhas e a cerveja e o Sol.
Obrigado, Inês.
Obrigado, Catarina, pela tua beleza, pelo teu salto de pés juntos. E pelo meu.

E se acaso falo com alguém longinquo, e se , hoje nuvem do possivel, amanhã caires, chuva de real sobre a terra, não te esqueças nunca da tua divindade original de sonho meu. Sê sempre na vida aquilo que possa ser o sonho de um isolado e nunca o abrigo de um amoroso. (...) Que o teu génio seja o ser supérflua, e a tua vida a arte de olhar para ela, de seres olhada, a nunca idêntica. Não seja nunca mais nada. Hoje és apenas o perfil criado deste livro, uma hora carnalizada e separada das outras horas. Se eu tivesse a certeza de que o eras, ergueria uma religião sobre (o sonho de) amar-te.

Livro do Desassossego