sexta-feira, 21 de março de 2008

O Retrato de Dorian Gray

"Não somos poucos os que às vezes acordamos antes do alvorecer, quer após uma daquelas noites sem sonhos que quase nos fazem enamorar pela morte, quer numa daquelas noites de horror e disforme alegria, quando pelas câmaras do cérebro esvoaçam fantasmas, mais terríveis do que a própria realidade, e o instinto, com aquela vida intensa que nos espreita em todos os bizarros grotescos, e que confere à arte gótica a sua duradoura vitalidade, arte essa que, como podemos imaginar, é especificamente a arte dos que têm as mentes perturbadas pelo mal do devaneio. Pálidos dedos penetram, trémulos, pelas cortinas. Em negras formas fantásticas, sombras mudas rastejam para os recantos do quarto e aí se encolhem. Ouve-se lá fora a restolhada dos pássaros por entre as folhas, ou o rumor dos homens que vão para o trabalho, ou ainda o murmúrio e o gemido do vento a descer as colinas, ou a vaguear em redor do silêncio da casa como se receasse despertar os que dormem, mesmo quando é forçoso fazer sair o sono da sua púrpura gruta.Ergue-se véu após véu da névoa ténue e sombria, e as coisas retomam gradualmente as formas e as cores, e vemos a madrugada a refazer o mundo na sua forma primeva. Os pálidos espelhos recuperam sua vida mímica. Os castiçais apagados encontram-se onde os deixáramos, e a seu lado está o livro de estudo a que não se cortaram todas as páginas, ou a flor armada que havíamos usado no baile, ou a carta que receáramos ler, ou que fora lida vezes sem conta. Nada nos parece alterado. Das sombras irreais da noite regressa a vida real que conhecíamos.Temos de a retomar no ponto em que a havíamos deixado, e então assalta-nos uma sensação terrível da necessidade de uma energia permanente na invariável ronda extenuante dos hábitos estereotipados, ou um anseio desmedido por uma hipotética manhã em que os nossos olhos acordem para um mundo renovado nas trevas para nosso prazer, um mundo em que as coisas tomem novas formas e novas cores, e que tenha mudado, ou tenha outros segredos, um mundo em que o passado seja ínfimo ou mesmo inexistente, ou que não sobreviva, pelo menos sob qualquer forma consciente de dever ou remorso, pois que até a lembrança da alegria traz amargura, e as recordações do prazer trazem mágoas"
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O Retrato de Dorian Gray - Oscar Wilde
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Não me interpretem mal. Aprecio este texto tal como aprecio a eternidade misteriosa das paisagens: pela sua distância espiritual e palpável - não me sinto acordar. Sou imune à sedução vácua da morte, seus beijos da facilidade do insosso. A morte é-me um ser assexuado. Só quando perder o meu nome, a minha identidade, por ela me apaixonarei. Muito menos sou antro de monstros fantásticos e paradoxais - enfermeiros de cor inoculando a ilusória monotonia da vida. Sei-me no seio de mim mesmo, só eu. E acabei de ler as cartas que receei ler; queimar as lidas "vezes sem conta". Conduz-me a eterna felicidade de ser alterado a cada aspereza do tempo.