domingo, 31 de agosto de 2008

Samanta sabia que a encontraria. Excitava-a a casa, a clareza da pedra, as telhas do telhado, a celulite idosa da porta negra: palavra que de resto nunca soubera encontrar no seu corpo, nas suas pernas. Deliciava-a a simplicidade das janelas, mas cedo se apercebeu da estupidez dos seus sentimentos, num virgem acesso de lucidez. Olhou o verde, não jovem mas alimento de necrófagos, da erva, o azul do céu e a realidade monocromática; suas ovelhas pastoreando. O Sol descia, imune, partira para a sua aldeia, como tantas outras vezes fizera.
Acordou sob a manhã, sob o tecto, sob tectos e assobiou estridentemente para os bichos brancos, babando os dedos. O Sol nascente conduzia-a, autómato, pelos trilhos de terra sangrada e seus ossos, e Samanta dançava as nádegas involuntariamente como as ovelhas que a seguiam. Interrompeu esse movimento sentando-se indolormente nas ervas que já viviam consoante o formato do seu traseiro e olhou-a. Sabia-a lá, a casa. Ruminando a fúria, a liberdade ou a leveza, correu para a porta velha e existencial. De lá de dentro se ouviam vozes masculinas. Bateu inúmeras vezes, excitada, esperando que o homem negro ou o homem-sonho lhe abrisse a porta. Não sabe qual delas abriu primeiro, se essa porta, se a que escondia por entre as pernas. Tampouco se importara. Deixou-se penetrar lentamente, como se chupasse um rebuçado, ocultada de si mesma, ou querendo-se assim?, dentro dos lodos nauseabundos da casa. O homem levara a sítios onde jamais teria ido.
Abriu os olhos empapados, carregando a sensação de que dormira por séculos seguidos. Ensalivou os dedos mais uma vez, comandando um grito para as ovelhas que miravam Samanta como um espelho. Desta vez teria pressa, ou conhecia algum objectivo, já que seus olhos se distinguiam do resto da sua face. Chegara mais cedo, como previra, aos campos que grunhiam e à casa. Olhou-a e largou-a num segundo do colar dos olhos, enquanto acariciava o pelo de uma do seu rebanho, como se receasse o seu desaparecimento, o seu abandono. E sem conseguir acalmar a volúpia e o acordar desajeitado (como quem não se habituara a acordar) das suas entranhas correu para a porta escura e masculina. Não quis esperar: não era virgem jamais. E abriu-a, esperando o bafo pestilento de um homem narinas acima. Mas Samanta encontrou apenas a claridade, a merda da claridade, a desocupação. Nada lá dentro senão uma velha espingarda e uma foto a cores sem margens, de uma encosta verde, a erva milimétrica, aquele lugar ou tantos outros, a paciência estúpida e atrasada das nuvens, o céu limpo e azul, um canto gregoriano repetindo vezes sem conta. Samanta sabia ser essa foto. Sabia também que o seu homem-sonho fora isso apenas, e de facto dormiu mais tempo do que o que guardava para o fazer. Um sonho. Todavia bendito aquele que decidira dar ao inconsciente do sono e ao desejo do homem o mesmo nome. E chorara de joelhos em frente à porta velha, aberta, fazendo-se chagas na pele com as unhas sem reparar, enquanto ouvia esse canto da sua cabeça vezes sem conta. Chorava a sua própria vida.
Riu-se. Caminhou para junto das ovelhas que pastoreava e imitou os quadrúpedes, para a trás e para a frente, de mãos no chão, soltando balidos de vez em quando: não a podem acusar de não ter tentado ambos os caminhos. Mas não. Apercebeu-se que não seria assim. Levantou-se, sem se sentir estúpida ou humilhada, e encontrou de novo a porta da casa, aberta ainda (como sempre estivera), e de lá de dentro a velha espingarda. Sem saber de onde lhe vinha a arte, disparou um tiro voluntário para uma das que pastoreava, talvez batendo o caminho, a volúpia, ou observando a morte.
Ouviram-se mais seis disparos rectos por entre gritos de própria vivacidade, gemidos de prazer e excitação. De felicidade.
Reconheceram-na pela face surpreendentemente incólume. Três cartuchos enterrados nas suas pernas; outros tantos no seu braço esquerdo. Samanta sucumbira enquanto o sangue escorria. Como desejara.

1 comentário:

Anónimo disse...

a tua escrita é dotada de uma beleza invulgar... aproveita essa originalidade, e a nuvem de sentimentos pela qual passas, para que escrevas mais con esta estranha inspiraçao!
até 4ª amigo!


Tiago