sexta-feira, 15 de agosto de 2008

A Hora do Diabo

Um dia destes, imediatamente após o meu regresso de Barcelona, e ligeiramente menos míope numa diferente visão, que não é senão a visão poética, apanhei o 501 e desci no Palácio. Da biblioteca Almeida Garrett, que lá se encontra, levava Baldios de José Tolentino Mendonça e Ou o poema contínuo de Herberto Hélder. Rapidamente me vi fartar de poesia e, como tudo o que é acaso é santo, mais ou menos aleatoriamente arranquei da prateleira A Hora do Diabo, nunca ouvira falar, de Fernando Pessoa. (Re)aprendi, embora com prazer, que a poesia não é apenas uma forma. Mas isso pouco interessa.

Falava de um Diabo, irmão de Deus, e todo o conto bate suas asas em redor de um diálogo entre esta personagem e Maria, uma mulher em tudo anónima menos no nome, fiel representante do sexo feminino. Um Diabo divergente da habitual concepção de diabo, um mestre da música, do luar, dos sonhos, mas que é apenas a oposição de tudo, o seu avesso,

Tudo vive porque se opõe a qualquer coisa. Eu sou aquilo a que tudo se opõe.

inclusive do próprio Deus,

Deus criou-me para que eu o imitasse de noite. Ele é o Sol, eu sou a Lua. Minha luz paira sobre tudo quanto é fútil ou findo, fogo-fátuo, margens de rio, pântanos e sombras.

E numa análise sumária, este Diabo é o criador daquilo que não existe, “a incarnação do nada”, tem como sua função apenas fazer sonhar,

Sou o Deus da Imaginação, perdido porque não crio.

Feitas as apresentações. Adiante, diz-nos:

Os problemas que atormentam os homens são os mesmos problemas que atormentam os deuses. (…) Tudo é símbolo e atraso, e nós, os que somos deuses, não temos mais que um grau mais alto numa Ordem cujos Superiores Incógnitos não sabemos quem sejam.

Somos então colocados, os homens e Deus, numa escada vertiginosa, numa hierarquia em que Este ocupa o patamar que nos é imediatamente superior, mas inferior a outros mais, de número incógnito, criadores do Criador, pais do Pai dos homens.
Ainda no mesmo monólogo, o Diabo introduz um novo elemento nessa escala, o animal, a sua base, imediatamente inferior à do homem. E explica-o, numa fala lindíssima.

O homem não difere do animal senão em saber que o não é. É a primeira luz, que não é mais que treva visível. É o começo, porque ver a treva é ter a luz dela. É o fim, porque é o saber, pela vista, que se nasceu cego. Assim o animal se torna homem pela ignorância que dele nasce.

E finalizando, nas palavras do Diabo, que é também ele um Deus, apercebemo-nos de uma espécie de leveza pesarosa, na condição divina. Também os deuses vivem o desassossego.

Tendes a vantagem de serdes homens, e creio às vezes, do fundo do meu cansaço de todos os abismos, que mais vale a calma e a paz de uma noite da família à lareira que toda esta metafísica dos mistérios a que nós, os deuses e os anjos, estamos condenados por substância. Quando, às vezes, me debruço sobre o mundo, vejo ao longe, indo do porto ou voltando a ele, as velas dos barcos dos pescadores, e o meu coração tem saudades imaginárias da terra onde nunca esteve. Felizes os que dormem, na sua vida animal, ― um sistema peculiar de alma, velado em poesia e ilustrado por palavras.

Diz Álvaro de Campos a Alberto Caeiro, num dos seus poemas: “Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.”

A Hora do Diabo é um livro fascinante, que pela sua natureza é igualmente contrariador, um espelho onde as ideias vêem a sua simetria.

Contrariar ideias é fazer com que nos abandonem, e se caia no desalento e de aí no sonho e portanto se pertença ao mundo.


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Midnight Juggernauts - Into the Galaxy. Uma música que me foi acompanhando ao longo desta pequena grande semana de férias.



2 comentários:

Anónimo disse...

Zé,

sabe tão bem ler o que escreves. Água na boca. Sem dúvida um livro a descobrir.

Um beijo,

Inês Marques

Patrícia Monteiro disse...

Só para que a minha passagem por aqui fique registada..

Deixaste me uma optima impressao do livro. Conseguiste torna lo fluido e claro.

Como se tivesses sorvido a obra e ela agora fosse de tal forma tua que decifra la se tornou tarefa facil.


Estou curiosa para lê la (:



Beijo